A abordagem do envelhecimento na formação universitária: os desafios da formação em Gerontologia

Toda a profissão tem uma pertinência social. A pertinência social do profissional licenciado em gerontologia – o Gerontólogo, está intrinsecamente relacionada com o envelhecimento demográfico do nosso continente grisalho (Rosa, 2015).

Há décadas que este cenário se fez sentir e, portanto, emergir a Gerontolgia enquanto formação em Portugal. Em 2004 frequentava o meu 1º ano da Licenciatura Bi-etápica em Gerontologia (UA) com muitas dúvidas e incertezas quanto ao (meu) futuro. Professores de excelência, por quem ainda hoje tenho uma profunda admiração, reuniam esforços para desenvolver a formação na área e responder a este repto social. Não havia ainda um Gerontólogo formado em Portugal. A formação multidisciplinar e o esforço dos professores por uma lente interdisciplinar foram desvanecendo as minhas dúvidas e consolidando o meu conhecimento, a minha segurança e certeza de que fazia sentido estudar gerontologia.

Hoje, no papel de professora que nunca abandona o de aluna, reconheço nos estudantes de gerontologia uma sede de saber sobre as suas funções na prática. Os desafios identitários relacionados com a emergência da profissão vão diminuindo com o crescente exercício de funções por parte dos gerontológos nos diversos contextos (e.g. institucional, comunitário ou autárquicos) e regiões do país. Portanto, os crescentes role models vão esclarecendo mais e mais a sociedade em geral sobre a ação deste profissional.

Durante as orientações de estágios que realizo, reconheço também que esses role models vão sendo mais frequentes e, por reunirem sinergias identitárias (o gerontólogo-tutor e estagiário), tornam-se facilitadores no contexto de estágio dos alunos finalistas: “…professora, vou estagiar naquele local porque a diretora técnica é gerontológa, tem feito um excelente trabalho e certamente que vou compreender melhor o meu campo ampliado de atuação, o que será um exemplo para o meu futuro.” Mas outros profissionais são também facilitadores: “ A minha orientadora é Psicóloga mas tem formação especializada na área da gerontologia e disse que receber-me vai ser ótimo para aprendermos juntas”. Assim como as próprias entidades de estágio: “Será a primeira vez que recebemos um estagiário de gerontologia, será um trabalho de benefício mútuo: o aluno vai trazer ideias frescas e nós transmitiremos a experiência de anos que temos na área do serviço social.”

Orientar estágios permite estar constantemente in loco, mesmo que à distância. Em cada estágio discutem-se casos, realidades, problemas, soluções, contextos, relações entre profissionais. Sobre este último aspeto, percebo que as dúvidas de profissionais de outras áreas com quem o gerontólogo se cruza se vão desvanecendo; vão compreendendo que faz sentido ter por perto um profissional que tem uma visão holística sobre o processo de envelhecimento e um olhar tão fino e rigoroso sobre a pessoa idosa nos seus contextos.

De facto, dado o conhecimento ampliado do Gerontólogo sobre o processo de envelhecimento, este profissional assume uma notória plasticidade de funções no seu perfil, nomeadamente (Associação Nacional de Gerontólogos, 2017): 1) gestão de caso (e.g. realizar avaliações multidimensionais com recurso a instrumentos validados e adaptados à população idosa portuguesa; planear, acompanhar e avaliar os planos individuais de intervenção para pessoas idosas e suas famílias, a partir do modelo de Gestão Individual de Caso; ativar e mobilizar recursos, formais e informais, que respondam às necessidades e expetativas das pessoas mais velhas, numa linha do continuum of care; 2) prestação de serviços e empreendorismo (e.g. desenvolver intervenções não farmacológicas, sustentadas em processos de avaliação de necessidades e potencialidades, que visem a otimização do funcionamento pessoal e social; 3) consultadoria (e.g. apoiar e orientar as respostas sociais/serviços gerontológicos, em conformidade com os requisitos/normativos definidos na legislação em vigor.

Definir a identidade profissional é ainda, a par da aquisição de conhecimentos, uma das tarefas do estudante que frequenta a licenciatura em gerontologia. Ser proactivo e encontrar a sua voz, é essencial. Na gerontologia, o aluno deve ser o primeiro a esclarecer-se sobre o seu papel e compromisso, só assim conseguirá esclarecer os mais interessados quanto à sua ação. A identidade profissional começa a construir-se na 1ª aula, no primeiro contacto, e desenvolve-se ao longo de todo o percurso profissional.

Durante as aulas que lecciono há 11 anos, procuro fazer refletir além do método expositivo ou a comum lição. Em gerontologia, como em qualquer área do exercício do processo de aprendizagem, há que respeitar os domínios ou áreas do saber evoluir (saber-saber; saber-estar; saber-ser; saber-fazer), para isso são adotadas técnicas pedagógicas relativas às metodologias ativas, nomeadamente (Mão-de-Ferro, 1999): análise textos científicos, role-playing; discussões em grupo; brainstorming.

No contexto pandémico que vivemos, surgem novos reptos no âmbito da formação. Numa fase em que o percurso académico não faz pausa e a necessidade de garantir a segurança dos alunos e das pessoas idosas e famílias (com as quais os alunos se cruzam no contexto de trabalho prático) é premente, as aulas são em algumas circunstâncias forçosamente assumidas num formato não presencial. Nada substitui o papel de um professor e a experiência de uma aula presencial. Ainda recordo as minhas. Mas urge a adaptação aos novos circunstancialismos pedagógicos e didáticos em que o uso do material audiovisual se tornou imprescindível no quotidiano da vida docente. É tempo de reunir esforços e tirar vantagens deste novo regime: as aulas com convidados internacionais especializados na área ganham destaque e permitem-nos conhecer outras realidades; e as técnicas pedagógicas descritas acima - inseridas em debate de situações, imprevistos e vivências de contextos - tornam-se mais essenciais que nunca. O maior desafio é sentido pelos alunos finalistas que veem ameaçado o estágio curricular de longa duração. Aqui, o contato com o idoso pode ser dificultado e, apesar de nada o substituir, cooperar com a instituição no desenvolvimento de estratégias que visem melhorar a qualidade de vida da pessoa idosa (que vê agora os contactos familiares restringidos) torna-se premente e assume destaque.

Ensinar é a melhor forma de aprender.” de acordo com a pirâmide de aprendizagem (William Glasser, 2000). E também “Ensinamos melhor aquilo que precisamos de aprender.” (Martinho Lutero). Aprendo sempre que ensino sobre a gerontologia e fico com mais certeza quanto à forma como pretendo continuar a envelhecer: desenvolvendo-me enquanto pessoa.Partindo desta premissa, desenvolvo a minha investigação e as minhas unidades curriculares, numa abordagem desenvolvimental do envelhecimento. O reconhecimentodo potencial de desenvolvimento da pessoa idosa por todos os profissionais que atuam na área do envelhecimento é pertinente e emergente, mesmo quando estamos diante de quadros patológicos. Quando reconhecemos a pessoa como um todo, com potencial de desenvolvimento e objeto de amor, conseguimos desempenhar muito mais do que uma profissão, estamos a manifestar a nossa essência enquanto seres humanos.

Ao formar estudantes estamos a preparar a sociedade para nos receber velhos. É uma missão, e começa em querer fazer mais e melhor pelos próximos e pela sociedade em geral. Desenvolvemo-nos até ao fim, e é isso que nos alimenta e permite continuar a ser.

Referências Bibliográficas:

Associação Nacional de Gerontólogos (2017). Perfil do Gerontólogo. Desponível em http://www.angerontologos.pt/. Acedido em 23 de Outubro de 2020.

Glasser, W. (2000). Teorija izbora. Zagreb: Alinea.Rosa, MJV, (2017). Urbanização: Contracetivo à fecundidade? XXI, Ter Opinião, nº4 - https://www.ffms.pt/artigo/991/urbanizacao-contraceptivo-a-fecundidade 

Mão-de-Ferro, A. (1999). Na Rota da Pedagogia. Lisboa. Colibri.



Sobre a autora: 

Filipa Daniela Marques é natural do Porto, onde reside. Licenciada em Gerontologia pela Escola Superior de Saúde da Universidade de Aveiro (2008). Doutorada em Gerontologia e Geriatria pela Secção Autónoma de Ciências da Saúde – Universidade de Aveiro e Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar – Universidade do Porto (2013). Foi bolseira de investigação da Fundação para a Ciência e Tecnologia (2009-2013). Professora Adjunta Convidada da Escola Superior de Educação de Coimbra – Instituto Politécnico de Coimbra (ESEC-IPC). É diretora do curso da Licenciatura em Gerontologia Social e coordenadora do Mestrado em Gerontologia Social. Orientou mais de 250 estágios em diversos contextos (ex.: institucional; comunitário; autárquico; cuidados de saúde primários e continuados) e regiões do país. Investigadora Integrada no CINTESIS – AgeingCluster.
Os seus interesses de investigação prendem-se com a perspetiva desenvolvimental do envelhecimento; desenvolvimento pessoal; gerotranscendência; relações intergeracionais; intervenções não farmacológicas e cuidado centrado na pessoa.

Filipa Daniela Marques

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