O futuro da Reforma

O crescente envelhecimento das sociedades mais industrializadas tem provocado um aumento continuado dos encargos com as pensões de reforma e de velhice no conjunto das despesas com a proteção social. Levantam-se, mesmo, imensas interrogações quanto à capacidade dos estados, mesmo dos economicamente mais desenvolvidos, para gerar um nível de riqueza capaz de perpetuar a lógica que preside ao atual sistema de pensões. A entrada na reforma da geração do “baby-boom”, bem como o progressivo aumento da esperança de vida, significam que, em 2050, a Europa correrá o risco de dispor apenas de duas pessoas em idade de trabalhar por cada pessoa idosa, em vez da relação de quatro para um que se verificava na viragem do século (OECD, 1998). Isto significará um impacto extraordinário na despesa pública relacionada com o envelhecimento, fundamentalmente devido ao reflexo que o aumento previsto das pensões de reforma terá nas finanças públicas. Para além das consequências políticas que poderão emergir neste quadro, é a própria ideia do que fazer com a reforma - materializada na expressão vida de reformado - que se discute. Com efeito, agora que a morte e a angústia a ela associada já não regulam, de forma tão veemente como outrora, a vida dos indivíduos aposentados (que eventualmente viverão 20/30 anos nessa condição), é possível ampliar o horizonte cronológico da existência, permitindo-lhes projetar e assegurar projetos de mais longo curso que não se restrinjam à simples contemplação da passagem do tempo (Fonseca, 2011).

O futuro vai impor algo de completamente diferente do que temos vivido até agora. Dado o prolongamento do tempo de vida, não será razoável admitir que essa mesma vida continue a dividir-se nas mesmas três etapas de agora, ignorando que a larga maioria das pessoas que hoje nascem irão seguramente ultrapassar os 80 anos de idade (Fernandes, Albuquerque & Fonseca, 2016). Se passarmos 20 ou 25 anos a estudar e depois 30 ou 40 anos a trabalhar (fazendo-o sem qualquer interrupção), sobrarão ainda muitos anos de potencial não atividade e dificilmente os sistemas de previdência social conseguirão responsabilizar-se por toda esta enorme quantidade de pessoas que trabalharia só uma pequena parte da vida. Na verdade, falar do “futuro da reforma” terá de implicar, desde logo, o abandono de uma construção cultural herdada do modelo industrial fordista, concebido antes da revolução da longevidade, em que a reforma estava associada à velhice (e vice-versa). 

Na Europa, a maioria dos sistemas de pensões que vigoram atualmente assenta num contrato tácito entre as gerações que remonta ao fim da segunda guerra mundial: a necessidade de estabelecer um direito universal à reforma para os “velhos” deve fazer com que, em troca do direito ao descanso na velhice, jovens e adultos usufruam do direito ao trabalho de uma forma estável e duradoura, após um período de formação. Por outro lado, a reforma contribui para a gestão dos recursos humanos através do afastamento dos membros menos rentáveis da força de trabalho, concedendo-lhes, em troca, o direito a um repouso subsidiado através do pagamento de uma pensão pelo tempo que lhes restar de vida. É com este quadro de fundo que faz sentido colocar uma questão da maior importância, tanto sob o ponto de vista social como para o quotidiano dos indivíduos: como repensar a distribuição dos tempos sociais de formação, de trabalho e de reforma no ciclo de vida, de modo a preservar o pacto de solidariedade entre as gerações e acomodar os desafios do envelhecimento e da longevidade? Já num relatório de 1998, a OCDE chamava a atenção para este problema pensando na realidade da maioria dos seus países membros: se em 1960 um homem médio passava 50 dos 68 anos esperados de vida a trabalhar, em 1995, dos 76 anos de existência esperada ele não iria consagrar ao trabalho mais de 38 anos (OECD, 1998). Estamos perante um autêntico movimento de “contração do trabalho”; a entrada dos jovens no mercado de trabalho é hoje mais tardia, devido ao alongamento da escolaridade e às dificuldades de inserção profissional, e a duração do tempo de reforma alongou-se consideravelmente. 

Ou seja, haverá cada vez menos pessoas em idade ativa e cada vez mais pessoas em idade potencial de reforma. Esta diminuição da população ativa, para além de representar um decréscimo da força de trabalho e do crescimento económico potencial, corresponderá ao mesmo tempo a um aumento da despesa comportada pelos sistemas de pensões, isto se mantivermos uma distribuição dos tempos sociais em que a reforma chega cedo num ciclo de vida que se alonga. Inevitavelmente, também colocará em causa os rendimentos futuros das gerações mais velhas que estejam dependentes dos rendimentos gerados pela população ativa, levando a equacionar algumas soluções possíveis, umas mais óbvias – como seja encarar a prolongamento da vida profissional como via para restaurar o equilíbrio financeiro dos sistemas de pensões, outras menos – como seja reorganizar as políticas educacionais de modo a facilitar frequentes reconversões profissionais ao longo da vida e promovendo desse modo a participação das pessoas mais velhas no mercado de trabalho (CEDEFOP, 2010). 

Este não é um problema específico do mundo ocidental, muito embora seja aqui que ele se coloca de forma mais aguda nos próximos anos. As economias dos países mais envelhecidos presumivelmente irão crescer de forma mais lenta do que as economias dos países mais jovens e, particularmente para as finanças públicas, uma população idosa é uma enorme dor de cabeça. Em países onde as pensões públicas constituem o bolo das pensões de reforma, uma larga fatia do orçamento da previdência social será engolido para as sustentar e elas tenderão a ser cada vez menos generosas. Os gastos com saúde vão seguramente aumentar e, por causa de um acentuado aumento do número de pessoas com mais de 80 anos, mais dinheiro terá de ser despendido em cuidados especializados de longa duração à medida que a fragilidade aumentar. Como consequência, é nos países onde a ideia de um “direito à reforma” floresceu e generalizou-se, que as pessoas terão de abandonar as expectativas que as pensões continuem a ser tão generosas como até aqui. Nos países da OCDE, as pensões de reforma líquidas de taxas e contribuições sociais atingiram em média 70% a 80% dos ganhos anteriores; em Portugal, nos anos 1990, foram comuns as situações em que, no momento da reforma, as pessoas recebiam 100% do último vencimento. Por outro lado, a idade oficial de acesso à reforma permaneceu igual até há pouco tempo ao passo que a esperança de vida subia consideravelmente, pelo que os aposentados ganharam mais anos para desfrutar a vida sem a pressão de terem de ganhar dinheiro para tal. Muitos acabaram mesmo por deixar de trabalhar e aposentaram-se antecipadamente porque lhes foram oferecidas condições irresistíveis para o fazer. Mas esses tempos terminaram ou estão em vias de terminar. Nos anos 1980, no mundo desenvolvido, havia apenas 20 pessoas aposentadas para cada 100 trabalhadores; esse ratio tem vindo a subir e em 2050 será de cerca de 45%, o que significa que, se nada for feito entretanto, nessa altura haverá apenas dois trabalhadores para cada pensionista (OECD, 1998).


O que fazer para lidar esta situação? 

Aumentar a idade de acesso à reforma é uma solução mas nem todos estão de acordo que essa seja a melhor solução. É verdade que trabalhar até mais tarde produz efeitos positivos (contribui para a produtividade, aumenta os rendimentos fiscais, aumenta os fundos disponíveis para a previdência social e assistência à saúde, aumenta as poupanças individuais), mas o aumento da participação dos indivíduos mais velhos no mercado de trabalho coloca em causa a criação de empregos para os mais novos e não pode ignorar-se que os empregadores, sempre que estão confrontados com a escolha entre um trabalhador mais velho e um mais novo, optam geralmente pelo mais novo…

Mas a verdade é que mesmo que os empregadores estivessem na disposição de contratar trabalhadores mais velhos, tal não significa, necessariamente, que estes tivessem assim tanto entusiasmo para continuar a trabalhar numa idade que se habituaram a ver como a “idade da reforma”. Tal dependeria muito das circunstâncias, isto é, da “cenoura” com que se lhes acenasse. Nas últimas décadas, nos países ricos, perante pensões de reforma razoavelmente generosas e com a reforma antecipada a ser intencionalmente encorajada, só mesmo os workaholics continuavam a trabalhar para além da idade estipulada para se aposentarem. Mas as coisas estão a mudar. Muitos dos baby-boomers americanos dizem agora que a reforma não é para eles, parcialmente porque receiam que não seja possível desfrutá-la com os rendimentos que gostariam de possuir e parcialmente porque na verdade gostam de trabalhar. Também na Europa tem havido uma mudança de tendência, havendo cada vez mais pessoas a afirmar que estão dispostas a trabalhar mais tempo se com isso receberem uma pensão maior no final. Finalmente, deve registar-se que se muitas pessoas permanecerem na economia formal até mais tarde, algumas das atividades que atualmente desenvolvem sem recompensa monetária vão ficar comprometidas (tarefas de voluntariado ou cuidar de netos e familiares idosos, por exemplo), tendo de ser pagas ou simplesmente deixando de ser efetuadas.

Movimentos demográficos e estas alterações na estrutura produtiva vão necessariamente afetar o nível de vida das populações. Se o número de trabalhadores (aqueles que contribuem para a produtividade e riqueza nacionais) aumenta mais do que o total da população (em que todos são de alguma forma consumidores) o nível de vida sobe, mas se tal não acontece o nível de vida tem tendência a descer, ou seja, passa a haver muita gente a consumir para pouca gente a produzir. Quem pagará o preço? Todos: indivíduos (mais novos e mais velhos), famílias e comunidades. Globalmente, é projetado que o número de pessoas com mais de 65 anos relativamente à população em idade de trabalho duplique entre 2010 e 2050, colocando uma enorme pressão nos sistemas públicos de pensões e tornando praticamente inevitável que as futuras gerações financiem as suas próprias reformas e não esperem que as gerações mais novas o façam (o que sucede num sistema redistributivo como o português).


Como poderemos responder a estes desafios?

Uma primeira solução é de carácter político: aumentar a idade para aceder à reforma. Acrescentar anos à vida profissional no final do ciclo de vida é encarada habitualmente como uma opção válida dada a melhoria evidente da condição de saúde dos indivíduos, mas quanto mais tempo terão as pessoas de trabalhar se o objetivo for restabelecer completamente, entre 2010 e 2050, os níveis de sustentabilidade entre quem produz e quem consome? Se em países como o México ou o Brasil bastaria acrescentar apenas um e três anos, respetivamente, para esse equilíbrio ser reposto, em países onde o envelhecimento populacional será mais acentuado nas próximas décadas, como a Finlândia ou a Suécia, seriam necessários mais seis anos. E países que estão a envelhecer ainda mais rapidamente necessitariam de um ajustamento vigoroso, com adiamentos acentuados da idade de acesso à reforma: oito anos no Japão, nove anos na Alemanha, dez anos em Espanha e na Coreia do Sul. Isto significaria transportar a idade de reforma para um patamar muito acima dos 70 anos, ou seja, literalmente, trabalhar até cair para o lado…

Uma segunda solução é de carácter mais individual e passa pela acumulação de poupanças. Uma vida mais longa vai significar uma reforma também mais longa e um aumento considerável do consumo, a não ser que as pessoas escolham trabalhar mais tempo. Mas como as pessoas têm menos filhos a tendência será gastarem mais com elas mesmas e vão querer continuar a fazê-lo mesmo após a reforma, pelo que são necessários ajustamentos: à medida que a idade avança em direção à reforma, reforçar a poupança e reduzir progressivamente o consumo é uma alternativa de sustentabilidade, aumentando dessa forma o rendimento disponível.

Com este enquadramento de fundo, dois grandes cenários poderão então ser traçados para o futuro (Moynagh & Worsley, 2005): 

(1) reforma adiada: neste cenário teremos nas próximas décadas o acesso à reforma a acontecer cada vez mais tarde (provavelmente aos 70 anos ou perto disso), mantendo as pessoas mais tempo nos locais de trabalho mas à custa de menor saúde e de uma motivação decrescente na última fase da vida profissional; 

(2) reforma reformulada: neste cenário o acesso à reforma não será adiado mas antes reformulado, o que significa passar a estar menos relacionado com a idade cronológica; as saídas da vida profissional serão mais flexíveis e o próprio conceito de “reforma total” é questionado, propondo-se que a partir de certa idade as pessoas possam trabalhar em diferentes ritmos consoantes as suas capacidades, necessidades, interesses e motivações, reduzindo a perceção de esgotamento que tantas vezes acompanha o período final da vida profissional. 

Qualquer um destes cenários significará sempre mudar a conceção de reforma tal como a vemos hoje, em que o início da reforma permanece relacionado com a idade, as vias para a reforma permanecem inflexíveis e a existência de uma “idade de reforma” ignora a diversidade de experiências dos indivíduos. Ou seja, num tempo em que se defende a flexibilidade laboral e a multiplicidade das vidas profissionais, o acesso à reforma permanece imutável, como há 50 anos: ou se é trabalhador a 100% ou se é aposentado a 100%. A grande mudança será a reforma deixar de ser vista como uma fase autónoma do ciclo de vida. As pessoas têm de poder misturar e combinar trabalho e lazer, criando caminhos fora do “trabalho a tempo inteiro” ou do “descanso a tempo inteiro”. A necessidade de encorajar não apenas o emprego flexível mas igualmente a reforma flexível torna-se uma prioridade política, eliminando o papel determinante da idade no acesso à reforma, oferecendo às pessoas mais escolha e flexibilidade, e por essa via mais oportunidades de satisfação, bem-estar e desenvolvimento pessoal.

Referências Bibliográficas:

  • CEDEFOP (2010). Skills supply and demand in Europe Medium-term forecast up to 2020. http://www.cedefop.europa.eu/en/publications/15540.aspx
  • Fernandes, A.A., Albuquerque, P., Fonseca, A.M. (2016). A (re)forma das reformas. Uma análise sociológica, económica e psicológica da reforma e do sistema de pensões. Coimbra: Almedina.
  • Fonseca, A.M. (2011). Reforma e reformados. Coimbra: Almedina.
  • OECD (1998). Work force ageing: Consequences and policy responses. Paris: OECD.



Sobre o autor:

Licenciado em Psicologia e doutorado em Ciências Biomédicas pela Universidade do Porto. Psicólogo membro efetivo da OPP. Professor associado de Psicologia, na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Coordenador do Mestrado em Gerontologia Social Aplicada na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (UCP). Membro integrado do Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano (UCP) e membro colaborador do CINTESIS (UP) e do Age.Comm (IPCB). Consultor do Programa de Coesão e Integração Social (área do Envelhecimento) da Fundação Calouste Gulbenkian. Na sua atividade científica e de docência dedica-se às questões do desenvolvimento psicológico e do processo de envelhecimento, sendo autor de livros, capítulos de livros e artigos científicos, publicados em Portugal e no estrangeiro, nas seguintes áreas: Desenvolvimento Psicológico, Psicologia do Envelhecimento, Bem-Estar Psicológico, Saúde e Qualidade de Vida. Publicação mais recente: Guia de Boas Práticas de Ageing in Place em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em: https://gulbenkian.pt/publication/boas-praticas-de-ageing-in-place-divulgar-para-valorizar/ 

António Fonseca

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