COVID-19 e Demência: O papel do gerontólogo no acompanhamento à distância da pessoa idosa e suas famílias

A situação atual vivenciada em relação à catastrófica pandemia de COVID-19, uma doença respiratória aguda, causada pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), desenvolveu prementemente, a carência de todos os serviços (públicos ou privados) de cuidado e apoio à pessoa idosa e às suas famílias e/ou cuidadores, havendo a necessidade de hierarquizar de forma diferente as referências e orientação da intervenção normativa. Esta necessidade refere-se não só a cada entidade responsável, mas principalmente no que compete ao perfil e funções desempenhadas por cada profissional, em cada instituição ou de forma particular. Este é, também, o caso no que toca aos gerontólogos com um papel direcionado para a intervenção nas doenças neurodegenerativas como as demências. Como exemplo temos a Associação Reabilitar Alzheimer, onde executo funções como gerontóloga, numa equipa multidisciplinar (Reabilitação Psicomotora, Gerontologia, Animação Socioeducativa e Ciências da Educação), realizando funções de gestora de caso, na intervenção especifica em estimulação cognitiva (sessões em grupo e individuais, nas instalações da associação, no domicilio/meio social - exterior e/ou em meio institucional) e apoio de orientação, aconselhamento e reencaminhamento a famílias e cuidadores. 

A população idosa e/ou com diagnóstico clínico de quadro demencial é considerada um dos grupos mais vulneráveis à infeção pelo novo coronavírus, tendencialmente devido a uma debilidade no sistema imunológico derivada da idade e historial patológico, o que consequentemente leva a um maior défice biológico e físico, tornando esta população mais suscetível a desenvolver complicações graves se contraírem esta patologia. Assim é primordial protegê-la do risco de contágio.Seguindo as recomendações das entidades governamentais e visando principalmente o bem-estar e a otimização do estado de saúde de cada uma das pessoas e famílias para e com quem trabalhamos em equipa, determinámos por tempo incerto, e até que a situação atual do país seja mais estável, a suspensão da nossa “rotina” de atividade, tal como tantas outras instituições ou profissionais. Esta medida visa diminuir o contacto físico diário a que as pessoas em causa já possam estar sujeitas. No entanto, mesmo que permaneçam em casa, não podemos descuidar que uma grande parte destas pessoas necessita de apoio para as necessidades básicas, como higienização e alimentação. Estas atividades são realizadas por outras respostas sociais existentes ou familiares, que infelizmente carecem muitas delas de material adequado de proteção e de informação e formação adaptada sobre procedimentos adequados, dificultando, assim, o cuidado prestado e aumentando o risco de infeção entre todos os intervenientes. 

O novo coronavírus ou “o novo apocalipse da sociedade”, vem colocar à prova, num pseudoestado de “guerra emergente”, todas as políticas e intervenções de serviços de saúde e sociais, que repentinamente viram assim ser necessário definir prioridades no cuidado. Se por um lado este estado de “caos” atual nos obriga a um isolamento social, que contribui decisivamente para manter a segurança de todos nós e evitar a propagação do vírus, por outro, devemos como agentes de saúde, responsáveis pelo o cuidado, estar sensibilizados para os riscos desta pandemia e das consequências deste período de isolamento social, associados ao processo de envelhecimento e às próprias doenças neurodegenerativas. Estabelecem-se novos paradigmas e desafios para cada família. Nomeadamente derivados das mudanças nas rotinas, das perdas de referência e de uma diminuição da intensidade da estimulação cognitiva, motora e sensorial profissional habitual. Assim, potenciam-se possíveis alterações significativas ao nível comportamental, cognitivo e funcional na pessoa com demência (avanço da patologia), não só devido à alteração da rotina, mas também por estarem confinados ao mesmo ambiente físico e social durante este período de isolamento. Consequentemente, existirá uma sobrecarga ainda maior, que já é característica no perfil físico e psicológico das pessoas cuidadoras. 

Existe uma responsabilidade e obrigação, para todos nós profissionais, de usarmos a nossa criatividade e de nos reinventarmos, num “novo olhar” sobre a otimização do cuidado prestado. Embora a intervenção não possa ser realizada presencialmente, é necessário utilizar novas metodologias de forma a adaptar a nossa intervenção à presente crise, adaptando possíveis novas dinâmicas e novos meios para que, mesmo à distância, possamos continuar a dar o nosso apoio imprescindível de uma forma presente. 

Sendo importante a partilha destas novas experiências profissionais ou metodologias de intervenção, de modo a incentivar outros profissionais/instituições e a fomentar o trabalho cooperativo entre todos nós, rede comunitária, apresento-vos algumas sugestões de novas estratégias a implementar na intervenção em estimulação cognitiva à distância e apoio à família/cuidadores, baseando-se na Teleassistência, dando continuidade ao trabalho que até ao momento já era desenvolvido, centralizando-nos no apoio especializado, individual e humano: 

Manter o contacto de proximidade: Promover o apoio regular aos utentes, às famílias e pessoas cuidadoras, através de telefone, e-mail e videochamada, monitorizando, vigiando e intervindo, se necessário, face a possíveis alterações no estado clínico atual e apoiando ao nível do conforto psicológico e emocional na gestão de dificuldades diárias associadas.

Grupo de ajuda mútua: Considerou-se ser importante, também, o contacto não só com os técnicos, mas entre famílias e cuidadores, que vivenciam realidades semelhantes. Desta forma, foi concebido um grupo através de uma plataforma digital, coordenado pelos técnicos, onde regularmente é partilhado material para a realização de atividades de estimulação cognitiva especifica e treino físico funcional (fichas e vídeos), incentivo à realização de outras ocupações de tarefas diárias e de lazer, assim como, a partilha de informação e mensagens solidárias de positivismo diário.

Informar e Formar - “Manual de Práticas e Dicas”: Existe a necessidade de informar corretamente os utentes e as famílias/cuidadores para a prevenção deste vírus e de formá-los, capacitando-os para uma melhor intervenção na gestão do processo demencial. Elaborou-se um manual de “Práticas e Dicas”, de forma a contextualizar sobre o COVID-19 e a disponibilizar um “Plano Individual de Bem-Estar e Apoio à Terapia em Casa”. Pretende-se informar sobre cuidados essenciais que se devem promover durante este período de isolamento, de modo a diminuir as consequências previstas e dar a conhecer estratégias essenciais para prevenir a infeção, como agir face a possíveis novos desafios no ato de cuidar (alterações comportamentais) e exemplos de práticas para estimularem o mais possível as capacidades cognitivas em casa (fazer tarefas domésticas, caminhar pela casa ou quintal, ir até à varanda ou janela, jogar jogos didáticos, ver fotografias, ouvir música, cantar ou dançar, realizar trabalhos manuais). Juntamente com o manual foi disponibilizado um guia de recomendações específicas de estimulação cognitiva individuais de acordo com o quadro clínico específico, gostos individuais, acompanhamento familiar, material disponível e habitação de cada caso, de modo a enquadrarem-se, especificamente as práticas e dicas gerais, abrangendo o maior número possível de técnicas de intervenção não medicamentosa, na área da estimulação cognitiva, como o treino de memoria, treino das atividades de vida diária, atividade física, estimulação sensorial, arterapia, musicoterapia, relaxamento, dança terapêutica e inclusive a intervenção com os próprios animais domésticos.

Sessões terapêuticas online ou à distância: Sendo importante tentar manter a rotina das sessões ou, pelo menos, a frequência dos exercícios específicos, este “novo modelo” de desenvolvimento das sessões deve-se realizar nos dias das supostas sessões agendadas para tentar manter a frequência e horário. As sessões podem ser concretizadas por videochamada e/ou telefone. A duração das sessões normalmente seria de 2h, sendo que por norma se realizavam no exterior. Nesta fase, devem ser adaptadas a uma duração de 45/90 minutos, que pode variar em função do estado motivacional, da capacidade de adaptação ao novo procedimento e características/capacidades individuais de cada pessoa. A acessibilidade às sessões deve ser garantida, com ou sem acesso a novas tecnologias. Deste modo, é desenvolvido um conjunto de fichas individuais, de 15 em 15 dias, disponibilizado aos utentes, famílias e cuidadores, via email. Na impossibilidade da impressão das mesmas, responsabilizamo-nos pela devida entrega com todas as medidas de prevenção adequadas. 

Aquisição de bens e serviços: Urge do surgimento desta pandemia, a procura de outros serviços de assistência, que não se verificavam anteriormente, não só pelo isolamento social do momento, mas também porque muitas das pessoas para e com quem trabalhamos se encontram agora privadas do contacto com os seus familiares. Muitas famílias que garantiam este apoio diário, também veem agora a sua dinâmica profissional e familiar alterada (terem de tomar conta dos filhos em casa, trabalharem em casa ou no exterior). Deste modo, existe a necessidade de se assegurar algumas das atividades instrumentais da vida diária, como ir às compras, à farmácia ou realizar-se outros serviços de assistência, como o pagamento de faturas, aquisição de receitas médicas, organização da medicação, entre outras.

Ronda de Janela: O contato visual é extremamente importante. Embora a sociedade atual, através da era da digitalização, nos permita agora mais que nunca, facilitar o cuidado à distância em altura de crise, não se equipara à importância do contacto presencial. Neste sentido, e porque a maioria da nossa população alvo, sem a colaboração de gerações mais novas, não tem acesso a todas as novas tecnologias e suas funções, como o realizar videochamadas, realiza-se uma vez por semana (para evitar também a deslocação do técnico ao exterior) uma ronda de carro por todos os domicílios de pessoas e famílias que são acompanhadas. Esta visita é realizada à distância, através de um “olá” e “sorriso” partilhado por janela. A ronda de janela permite-nos, com as devidas medidas de prevenção, monitorizar mais de perto alterações comportamentais, estimular o reconhecimento do técnico pela pessoa acompanhada e diminuir a tristeza/stress gerados pela incapacidade de compreensão da situação atual de ausência de rotina diária. Também é através da ronda de janela, que são entregues os devidos materiais, os bens solicitados ou algum apoio mais específico. 

Vivemos atualmente numa altura de incerteza, em que cada dia surge acompanhado de uma nova mudança ou dilema. Somos assombrados pelos pensamentos e sobressaltos mais negativos, pessoal e profissionalmente, devido ao medo constante desta incerteza e pelos desfechos mais trágicos que se têm verificado, relativamente ao surgimento deste vírus e às suas proporções dramáticas, não só a nível nacional, como a nível mundial, perante a humanidade. Para este estado de espírito contribui também o estado de calamidade em que se encontram os serviços de saúde e sociais, particularmente os que prestam serviços à população idosa, estes que são sectores básicos e essenciais, não só para sobrevivência da sociedade, como principalmente desta população, que mais tende a ser penalizada (flagelo social) e onde a tristeza de muitas perdas permanecerá num futuro longínquo. O medo existe. Deve e tem de ser sentido. Mas este medo não nos pode paralisar! Procedamos à introdução e continuação do trabalho que temos desenvolvido ao longo dos tempos, no que se refere à mudança de atitudes e comportamentos perante a valorização da humanização das relações inter e intrapessoais. 

É fundamental refletir que, no mundo atual, vivenciamos mais que uma crise económica e política, uma crise de valores e conceitos ético-profissionais: humanidade, respeito, inclusão e solidariedade. É essencial que continuemos a trabalhar em equipa, em cooperação constante entre profissionais, entidades e diferentes sectores públicos e privados, em prol da estabilidade e bem-estar da sociedade, capacitando as comunidades para o envelhecimento ativo e autoeficiente, educando e introduzindo nas gerações atuais valores de mudança de atitude. Seguimos com medo… Mas seguimos! Centralizando-nos na otimização do cuidado, no bem-estar geral, apoio, carinho e respeito para todos os nossos “avós” e suas famílias, desafiando-nos a nós próprios e fazendo frente a esta pandemia. Momentaneamente deixemos de parte os interesses e desacordos políticos, as culpabilizações ou desresponsabilizações, necessitamos de encarar os factos e de agirmos com determinação e foco, em conformidade, pela mesma causa!

Rita Trindade

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