A solidariedade entre gerações

Um dia, era eu adolescente, o meu avô já idoso foi dar o seu habitual passeio pelas redondezas e quando voltou tinha uma ferida no rosto. Contou que um grupo de miúdos lhe tinha atirado pedras; e rematou dizendo que quando era miúdo já tinha feito o mesmo, ou seja: atirar pedras as pessoas idosas! 

Podemos pensar no porquê, no para quê, criticar, … Mas o que interessa mesmo é fomentar a solidariedade entre gerações e transformar o afastamento entre mais velhos e mais novos em algo positivo.

A solidariedade intergeracional pode ser definida em duas ideias: ligação e troca entre gerações. A ligação é o que mantém as gerações unidas, salientando a interação, apoio e entreajuda; a troca refere-se ao que as gerações dão e recebem umas das outras. Mas ultrapassa a reciprocidade (equivalência entre o que se dá e recebe), envolvendo também altruísmo. A solidariedade intergeracional ocorre a nível micro (família) e macro (sociedade). Ao nível micro refere-se às diversas gerações de uma família (bisavós, avós, pais, filhos), que dão apoio ao longo da vida e dos vários momentos de desenvolvimento individual e familiar. No nível macro alude à distribuição entre a geração adulta e ativa (contribuintes) que paga impostos, compra serviços e dá o seu tempo a outras gerações não ativas (beneficiários). No quotidiano percebemos que a organização social (formal/institucional) e informal afasta as gerações. Vejamos: as crianças frequentam jardins-de-infância organizados por idade e depois seguem para a escola também organizadas por idade; os adultos estão nos seus trabalhos; e para os mais velhos existem também instituições específicas.

Os programas intergeracionais emergiram nos anos 1960, como veículos para a troca de recursos e aprendizagem entre gerações, de modo a alcançar benefícios sociais e individuais. Nos anos 1960, esses programas centravam-se em ligar pessoas idosas a crianças em idade escolar, para que as crianças melhorassem o desempenho académico e conhecimento sobre o envelhecimento. Os anos 1970/80 testemunharam o desenvolvimento de políticas e redes sociais que unem novos e velhos. Nos anos 1990 emergiram manuais, vídeos e institutos de promoção de relações intergeracionais. Os anos 2000 permitiram maior disseminação de práticas, programas e políticas a nível internacional. Estes programas baseiam-se em dois fatores: transmissão da cultura tradicional pelos idosos aos mais novos (permite aos mais novos conhecer e assegurar a continuidade da cultura, fomentando a identidade individual e comunitária); necessidade de unir gerações (reunir os diferentes contributos).

Os programas intergeracionais focam a ligação entre várias gerações para responder a problemas sociais; ou seja, cada geração e cada pessoa contribuindo com o que tem de único: as crianças são a garantia da continuidade e evolução social, precisam de educação e suporte emocional; os adolescentes representam quem desafia as ideias preconcebidas, podendo contribuir para alterações sociais relevantes; os adultos têm um papel de garantia da sustentabilidade económica e continuação da família. Fica por definir o papel dos mais idosos, pois numa sociedade muito centrada nos ganhos económicos torna-se difícil valorizar o contributo daqueles em idade não-ativa; ou então tende a valorizar-se os idosos que continuam produtivos, por exemplo como voluntários. Este contributo é real e muito relevante, mas continua a centrar um contributo de cariz económico, que dificilmente caracterizará a participação única e especial de uma pessoa idosa. Consideramos que o contributo mais especial das pessoas idosas deriva da sua experiência de vida, que se traduz num contributo ético e desenvolvimental: lições de vida, dinamização da vontade social, detentores da história e identidade comunitária. As políticas e programas intergeracionais exigem uma alteração fundamental de perspetiva: dos papéis divididos entre gerações (ativos versus não ativos) à colaboração entre gerações (contributo de cada um segundo as suas possibilidades, motivações e competências).

Desde os anos 1990 que o campo da solidariedade intergeracional faz parte da agenda política Europeia: 1993 – Ano Europeu das Pessoas Idosas e da Solidariedade entre Gerações; 1999 – Ano Internacional das Pessoas Idosas; 2012 – Ano Europeu do Envelhecimento Ativo e Solidariedade entre Gerações. Esta agenda foi bem recebida pelas comunidades, que se têm multiplicado em iniciativas. Os programas e atividades intergeracionais são instrumentos de construção de sociedades para todas as idades, cujas finalidades incluem: nutrir relações e unir gerações; reforçar a transmissão da herança cultural (material e imaterial); encorajar atividades e vida social cruzando gerações; responder a problemas sociais de forma intergeracional; e construir um sentido de identidade pessoal e social. A literatura indica-nos que juntar gerações será mais bem-sucedido se começar nos lugares em que cada geração se sente “em casa”, ou seja, na maioria dos casos nas instituições (como escolas e lares), exigindo que se transcendam as tradicionais fronteiras institucionais. Espera-se que os programas intergeracionais promovam uma nova forma de vida em comunidade, em que todos contribuem; exige uma grande mudança: da segregação geracional à cooperação entre gerações.

Nos últimos anos criei um grupo “improvável” de amigos, pelo menos se considerarmos a tendência para a segregação geracional. O meu grupo de “passeadores” de cães (um encontro necessário e desejado diariamente) tem pessoas de todas as idades (desde os 20 aos 80 anos) que se reúnem por amor aos seus cães e pela amizade que construíram. Neste grupo, nada interessa a idade, a raça, o estatuto social e económico, … estamos juntos na nossa amizade e amor pelos nossos cães.

A minha experiência no desenvolvimento de programas intergeracionais indica-me que é essencial ter gerontólogos envolvidos; a maioria dos profissionais percebe a importância destas atividades, mas tende a centrar-se nos mais novos (uma das partes), sendo necessário focar também os mais velhos e as ligações. Os gerontólogos, atuando numa perspetiva de envelhecimento ativo, sabem atuar em termos de aprendizagem ao longo da vida, e são um elo de ligação essencial.

(1) Baseado em: Sousa, L (2013). Intergenerational solidarity: bringing together social and economic development. In A. Oliveira (coord), Promoting conscious and active learning and aging: How to face current and future challenges (pp. 149-160). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.



Sobre a autora: 

Liliana Sousa é investigadora integrada do CINTESIS – Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, no grupo de investigação AgeingC, no polo da Universidade de Aveiro, onde é Professora Associada com Agregação desde 2016. Encontra, na Gerontologia, a sua paixão e o seu lugar. 

Liliana Sousa

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