As diferentes faces da pobreza entre os idosos
Complexidade e indeterminação da vulnerabilidade à pobreza fazem dela um fenómeno difícil de estudar e combater na formulação de políticas. Vivemos em tempos de recuo e contenção nos sistemas de proteção social e de reforma do Estado social, sendo que todas as tendências sugerem que aos indivíduos será pedido que assumam cada vez mais responsabilidades pela provisão do seu bem-estar na velhice. Em simultâneo, o envelhecimento da população antecipa crescentes pressões sobre a assistência social e sobre os mecanismos de redução da pobreza. É fundamental, por isso, discutir a pobreza na velhice a partir das suas causas e nas suas manifestações mais abrangentes.
As políticas sociais, em Portugal, dirigidas especificamente à proteção social dos idosos, têm privilegiado, como sabemos, as abordagens de tipo monetarista. Nesse sentido, assentam quase exclusivamente em metodologias de medição de rendimento disponível para definição de elegibilidade. O que se verifica a este respeito é que deixam de fora um número muito significativo de indivíduos que, mesmo que oficialmente acima da linha monetária de pobreza, vivem em condições que dificilmente são ultrapassáveis com os rendimentos próprios. A medição do nível de bem-estar a partir do recurso ‘rendimento’ não permite entrar em linha de conta com o processo de construção, ao longo da vida, de mecanismos de proteção (ou de exposição) em relação ao risco de pobreza que, sendo certo que eles próprios estarão dependentes do rendimento, podem salvaguardar um nível mínimo de bem-estar futuro em situações em que o rendimento monetário por si só se mostre insuficiente ou, pelo contrário, podem determinar a acumulação de elementos de desvantagem que, aprofundando-se ao longo do tempo, comprometem o nível de bem-estar dos indivíduos, não sendo ultrapassáveis mesmo em condições em que, em termos monetários, o indivíduo não se encontre em situação de pobreza.
A medição do nível de bem-estar a partir do recurso monetário só entra em linha de conta com o lado da capacidade de resposta a uma necessidade estandardizada, não permitindo qualquer ajustamento ao lado da necessidade se esta for atípica. Ou seja, a definição da linha de pobreza, mais frequentemente calculada a partir do valor médio ou do valor mediano da distribuição total do rendimento na sociedade respetiva, considera o volume de recursos monetários que o indivíduo tem por referência a um valor padrão. Esse valor padrão pode ter, e previsivelmente terá, diferentes significados de acordo com o contexto individual de necessidades do indivíduo. Situações de doença são bem emblemáticas enquanto situações atípicas que encerram um potencial elevado em termos de mobilização de recursos monetários que, nesse caso, terão que ser canalizados para uma dimensão de consumo que poderá colocar em causa a possibilidade de desenvolver o consumo padrão que define o nível mínimo de bem-estar.
Uma outra forma, por isso, de discutir pobreza é medindo as condições de vida dos indivíduos, privilegiando, desta forma, o lado da tradução efetiva de recursos em concretizações. Não entraremos, neste texto, numa discussão detalhada sobre as metodologias disponíveis para avaliar pobreza enquanto acesso a condições de vida. Ao invés, e seguindo algumas abordagens seminais sobre o tema, iremos deter a nossa atenção numa dimensão específica, particularmente importante para a população idosa, tal como já amplamente discutido e demonstrado na literatura e que nos permitirá refletir, enquanto exemplificação, sobre o alcance limitado dos instrumentos de política social dirigidos ao alívio da pobreza entre idosos em Portugal – o conforto habitacional.
Usando a definição de conforto habitacional do Eurostat, a qual não é particularmente generosa já que envolve a observação de condições como humidades, infiltrações nos tetos, janelas e portas apodrecidas, podemos afirmar que, em 2014, cerca de 46% dos idosos que vivem sozinhos assinalavam a presença de pelo menos uma dessas condições de deterioração habitacional. Quando afunilamos, ainda mais, a análise das condições habitacionais, focando uma questão que é reconhecidamente importante ao nível da qualidade dos ambientes em que se vive, a questão relativa ao aquecimento da habitação, o panorama torna-se ainda mais negativo. Segundo os mesmos dados do Eurostat, os níveis de pobreza energética subjetivos (o indivíduo considerar que não tem capacidade financeira para manter a casa aquecida no inverno) ultrapassam os 60% para os idosos que vivem sozinhos e chegam quase a 50% no caso dos idosos em coabitação com outro adulto.Este tipo de análise, que pode ser ainda mais detalhada, reclama alguma atenção sobre a relação entre o rendimento monetário disponível e a sua tradução em condições de vida e, consequentemente, sobre a natureza das políticas de apoio aos idosos que visam, diretamente, o alívio de situações de pobreza. A ênfase exclusiva dos mecanismos de proteção social no rendimento disponível, a partir de uma lógica de mínimos coincidente com a linha de pobreza monetária, priva, para todos os efeitos, o indivíduo de quebrar o ciclo de pobreza habitacional, ele próprio um resultado de trajetórias de vida anteriores à entrada na velhice, e que previsivelmente se agravarão à medida que o tempo avança.
Ou seja, ao lado das causas estruturais da pobreza na velhice, e largamente como manifestações materiais dessas causas, o que uma breve incursão à realidade das condições de vida dos idosos faz é alertar para o acentuado desencontro entre o quadro que se traça a partir de uma abordagem exclusivamente centrada na medição de rendimento monetário, e que serve de referência para o acesso a apoios sociais (a qual indicaria para Portugal, em 2015, uma taxa de pobreza de cerca de 17% entre a população com 65 anos ou mais), e aquele a que chegaremos se introduzirmos mais camadas e caminharmos para uma análise centrada na concretização do rendimento em consumos e nos contextos de necessidades onde o rendimento deve ser mobilizado. A previsão mais razoável para esse desencontro é que excluirá do leque de indivíduos em situação de vulnerabilidade um conjunto alargado de idosos, por um lado, e que não criará as oportunidades efetivas para romper com o ciclo de exclusão que se vai cristalizando ao longo da trajetória de vida, antes o reproduzindo.
Sobre a autora:
Alexandra Lopes é professora no Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto. Doutorada em Política Social pela London School of Economics com uma tese sobre os arranjos familiares dos idosos dependentes em Portugal. E-mail: aslopes@letras.up.pt
Alexandra Lopes
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